Há pouco tempo fui visitar a aldeia onde passei a maior parte da minha infância. Vivia numa casa alugada mesmo colada a uma escola primária, o que era conveniente para mim, mas mesmo assim ainda conseguia por vezes chegar atrasada às aulas. É defeito já tatuado nos meus genes, nada a fazer.
Ter a casa justaposta à escola primária tinha as suas vantagens, quando o pessoal jogava à bola -
e nesta aldeia só há mesmo um campo de futebol - a bola muitas vezes ia para além da rede e parava onde? No meu quintal
(meu salvo seja, do meu senhorio mal humorado). Ora aqui a Je sentia-se a maior da sua rua
(também não havia mais nenhuma, mas isso são pormenores). Algum problema? Chama-se a Pinkaholic.
Ainda me lembro do primeiro dia de aulas. Luzes fortes, miúdos com ar assustado por todo o lado, carteiras, livros, um quadro negro na parede..Ninguém me avisou que ISTO era a escola. Qual quê, não tive meias medidas, fugi para casa e escondi-me atrás do sofá. A professora Alierta teve que ir lá convencer-me a voltar, a minha mãe envergonhadíssima como tudo, e no fim concordei em voltar, desde que pudesse levar a minha bicicleta cor-de-rosa com rodinhas de apoio. Claro que ela deixou, e começou nesse momento o reinado da Pinkaholic na escola primária, que logo no primeiro dia de aulas deixou os novos colegas de turma andar na bicicleta cor-de-rosa (sim, até os rapazes). A bicicleta foi um dos inúmeros gadgets que eu levava para a escola, já que morando a poucos metros de distância, a minha mãe não parecia se importar de eu levar para lá os brinquedos - vamos ser realistas : separando o quintal do recreio havia apenas uma rede, fui praticamente
homeschooled!
Uma coisa que me surpreendeu bastante quando fui revisitar a aldeia, foi a melhoria das condições do recreio da escola: os baloiços, escorrega e todas as outras diversões são agora feitas de plástico sem ângulos pontiagudos, tudo fofinho, o chão feito de um material esponjoso sem perigo para as crianças. Mas elas agora são mariquinhas ou quê? Que seres humanos estamos nós a criar, que nem brincar como manda a lei da selva, podem?? Que valores vão eles aprender? "Ah bati com a cabecinha no chão! Espera, é feito de marshmallows e algodão doce, vamos-nos lá todos atirar do escorrega , a vida afinal não é nada dificil!"
Ah, no meu tempo não. Tínhamos O escorrega. Um escorrega de 30 metros de altura, ou pelo menos era o que me parecia nesse tempo. Era de madeira, e digamos que já não era propriamente novo, sendo que as tábuas estavam todas gastas, com farpas espetadas e puas a espreitar prontas a atacar o rabinho do miúdo desprevenido. Era um risco que estávamos dispostos a correr.
Tínhamos umas barras de ferro. Sim ferro duro e já corroído, que deixava as mãos com aquele cheiro metálico e bocadinhos de ferrugem. Usávamos essas barras e digo-vos, éramos dignos de um "Cirque de Soleil". Por baixo, a proteger do cimento, apenas uma fina camada de areia com conchinhas e pedrinhas bem afiadas, e com sorte, moedas perdidas (nunca me esquecerei de quando caí das barras e ia começar a chorar, mas vi uma moedinha reluzente de 50 escudos. Galo na cabeça? Qual galo? Ainda dizem que o dinheiro não traz felicidade, fiquei radiante o resto do dia!)
No meu tempo ir para o recreio, isso sim, era uma aventura.